BECKETT - O PROMETEU SILENCIOSO
Samuel Beckett é retratado em texto do inglês Terry Eagleton.
O irlandês Samuel
Beckett foi um niilista de esquerda que
usou seu realismo sóbrio e sombrio para libertar a espécie humana dos
totalitarismos.
Samuel Beckett foi um artista cuja visão da existência humana era tão sombria e cética que ele conseguiu nascer não apenas numa sexta-feira 13 mas numa sexta-feira 13 que, além disso, foi uma Sexta-Feira Santa. Mais tarde, ele aludiria ao dia da morte de Cristo num chiste imortal em "Esperando Godot": "Um dos ladrões (do Calvário) se salvou. É uma porcentagem razoável".
Samuel Beckett foi um artista cuja visão da existência humana era tão sombria e cética que ele conseguiu nascer não apenas numa sexta-feira 13 mas numa sexta-feira 13 que, além disso, foi uma Sexta-Feira Santa. Mais tarde, ele aludiria ao dia da morte de Cristo num chiste imortal em "Esperando Godot": "Um dos ladrões (do Calvário) se salvou. É uma porcentagem razoável".
O calendário de comemorações do centenário de Beckett é repleto de eventos
literários que celebram a vida do pessimista mais cativante da era moderna -a
maioria, é possível imaginar, repletos de comentários sobre a condição humana
atemporal retratada em sua obra.
Nada poderia estar mais distante da verdade. Para começo de conversa, Beckett
encarava essas interpretações portentosas de sua obra com o típico espírito de
deboche irlandês. "Não enxerguem um símbolo onde nenhum foi
pretendido", ele certa vez lembrou aos críticos.
Além disso, ele não era um espírito independente do tempo, mas um protestante
irlandês do sul de seu país, integrante de uma minoria assediada por alienígenas
culturais cercados dentro do triunfalista Estado católico livre. Enquanto
mansões anglo-irlandesas eram incendiadas por republicanos durante a guerra da
independência, muitos protestantes fugiram para a Inglaterra. A paranóia, a
insegurança crônica e a marginalidade consciente de si da obra de Beckett fazem
bem mais sentido quando vistas sob essa luz.
O mesmo pode ser dito da qualidade intransigente e destituída de qualquer
excesso de seus escritos, com sua aversão protestante a enfeites e excessos de
qualquer tipo. Se ele não demorou a abandonar a Irlanda e mudar-se para Paris,
foi em parte porque, se fosse o caso de ficar sem casa, era possível sê-lo tão
bem no exterior quanto em seu próprio país.
Como aconteceu com seu amigo James Joyce, outro nômade literário irlandês, o
exílio interno não demorou a transformar-se em emigração literal. O sentimento
de isolamento e alienação do artista irlandês podia facilmente se traduzir em
angústia existencial modernista européia.
Beckett estava longe de se envergonhar por ser irlandês. Sua resposta célebre a
um jornalista francês que, ingênuo, perguntou-lhe se ele era inglês foi
"au contraire". Seu humor negro e satírico é uma característica não
só pessoal mas cultural. Porém ele não conseguiu encontrar uma base segura de
apoio no interior de seu introvertido Estado gaélico, e o minimalismo austero
de sua arte é, entre outras coisas, uma crítica à retórica nacionalista
inchada.
Arte fragmentária
Mas há uma qualidade distintamente irlandesa na deflação feita por Beckett
do bombástico e extravagante, assim como há algo reconhecivelmente irlandês
naquelas paisagens áridas e estagnadas onde, como vítimas coloniais, não se
fazia nada a não ser ficar sentado, aguardando uma libertação ou um resgate.
Assim, não é surpreendente que esse mestre da arte dos despossuídos tenha se
visto, em 1941, combatendo ao lado da Resistência francesa. Vivendo em Paris
sob a ocupação alemã, ele se juntou a uma célula que fazia parte das Operações
Especiais Britânicas e aplicou sua habilidade literária no trabalho de
datilografar e traduzir informações secretas.
Quando a fachada atrás da qual a célula se escondia foi descoberta, muitos de
seus companheiros foram deportados para campos de concentração. Beckett e sua
mulher, Suzanne, conseguiram escapar de ser detidos por uma questão de dez
minutos. Refugiaram-se em um pequeno povoado próximo a Paris, onde Beckett
trabalhou no campo e voltou a se unir à Resistência.
Dessa vez suas tarefas incluíam montar emboscadas para alemães e recolher
suprimentos enviados pela RAF [Força Aérea Britânica] por pára-quedas.
Em Paris, depois da guerra, ele e Suzanne passaram frio e fome, como o resto da
população, e seus dedos muitas vezes estavam azuis de frio quando segurava a
caneta. Mais tarde, receberia a Cruz de Guerra em homenagem a suas proezas na
resistência clandestina.
Fato incomum entre artistas modernistas, esse suposto divulgador do niilismo
era militante da esquerda, em lugar da direita. Defensor do ambíguo e do
indeterminado, sua arte provisória e fragmentária é supremamente
antitotalitária.
É também uma arte nascida à sombra de Auschwitz, que conserva sua fidelidade ao
silêncio e ao terror ao enxugar sua linguagem, seus personagens e suas
narrativas quase até o desaparecimento. É a obra de um homem que compreendia
que o realismo sóbrio e sombrio serve à causa da emancipação humana melhor do
que a utopia sonhadora.
Terry
Eagleton é professor de
teoria cultural na Universidade Manchester (Reino Unido) e autor de
"Depois da Teoria" (Civilização Brasileira) e "A Ideologia da
Estética" (Jorge Zahar) , entre outros. Este texto foi publicado no
"Guardian".
Tradução de Clara Allain.
1 comentários :
Excelente texto.
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