CASABLANCA, OU O RENASCIMENTO DOS DEUSES

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trechos do texto de Umberto Eco publicado em "Viagem na irrealidade cotidiana"


"O filme já começa num lugar mágico de per si, o Marrocos, o Exótico, inicia com um quê de melodia árabe que se esfuma na Marselhesa. Quando entra para o ambiente de Rick, ouve-se Gershwin. África, França, Estados Unidos. A essa altura entra em cena um emaranhado de Arquétipos Eternos. São situações que presidiram as histórias de todos os tempos. Mas habitualmente para fazer uma boa história basta uma única situação arquetípica. E sobra. Por exemplo: O Amor Infeliz. Ou A Fuga. Casablanca não se contenta: coloca todas. A cidade é o local de uma Passagem, rumo à Terra Prometida. Para passar, porém, é necessário submeter-se a uma prova, A Espera ("esperando, esperando, esperando", diz a voz off no começo). Para passar do vestíbulo de espera à Terra Prometida, é preciso uma Chave Mágica: o visto. Em torno da Conquista desta chave desencadeiam-se as paixões. A mediação da chave parece ser feita pelo Dinheiro (que aparece em diversas cenas, geralmente sob a forma de Jogo Mortal, ou roleta): mas por fim se descobrirá que a chave somente pode ser dada através de um Dom (que é o dom do visto, mas é também o dom que Rick faz de seu Desejo, sacrificando-se) Porque esta é também a história de um turbilhão de desejos, dos quais apenas dois acabam sendo satisfeitos: o de Victor Laszlo, o herói puríssimo, e o do casalzinho búlgaro. Todos aqueles que têm paixões impuras fracassam. E então, outro arquétipo, triunfa A Pureza. Os impuros não chegam à terra prometida, somem antes; no entanto realizam a pureza através do Sacrifício: é a Redenção".


(...)


"Em torno dessa dança de mitos eternos estão os mitos históricos, ou seja, os mitos do cinema devidamente revisitados. Bogart personifica pelo menos três deles: o Aventureiro Ambíguo, misto de cinismo e generosidade; o Asceta por Desilusão Amorosa e ao mesmo tempo o Alcoólatra Redimido. Ingrid Bergman é a Mulher Enigmática ou a Mulher Fatal. Em seguida há Ouça Querido a Nossa Canção, o Último Dia em Paris, a Legião Estrangeira (cada personagem tem uma nacionalidade diferente) e finalmente o Grande Hotel Gente-Que-Vai-Gente-Que-Vem. (...) De modo que Casablanca não é um filme, é muitos filmes, uma antologia. E por isso funciona, a despeito das teorias estéticas e das teorias filmográficas. Porque nele se desdobram, em força quase telúrica, as Potências da Narratividade em estado selvagem, sem que a Arte intervenha para disciplinar.

"E então podemos aceitar que as personagens mudem de humor, de moralidade, de psicologia, de um momento para o outro, que os conspiradores pigarreiem para interromper a conversa quando se aproxima um espião, que as mocinhas de vida fácil chorem ao ouvir a Marselhesa.

"Quando todos os arquétipos irrompem sem decência, são atingidas profundidades homéricas. Dois clichês provocam riso. Cem clichês comovem. Porque se percebe obscuramente que os clichês falam entre si e celebram uma festa de reencontro. Como o cúmulo da dor encontra a volúpia, o cúmulo da banalidade deixa entrever uma suspeita de sublime".

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